Há alguns anos assisti ao filme chamado "A chave do sucesso". Havia um personagem cujas despesas estavam sendo custeadas para que ele fosse a um Congresso vender produtos da empresa em que trabalhava. Entretanto, durante o Congresso, o funcionário gasta todo seu carisma, simpatia e tempo evangelizando as pessoas para as quais deveria estar vendendo o produto do seu patrão. Esta é a questão debatida no filme.
Lembro-me das histórias do "Contrabandista de Deus" do irmão André. Histórias fascinantes em que ele contrabandeava Bíblias para trás da cortina de ferro, dando acesso à leitura da Bíblia aos milhões de oprimidos pelo Governo Comunista.
Sei de missionários que vão a países extremamente fechados, onde cristãos são perseguidos e mortos caso ousem evangelizar. Nesses países só é possível entrar como "fazedor de tenda". São missionários biocupacionais. Entram legalmente como médicos, professores, dentistas, enfermeiros etc. São situações delicadas, uma vez que até suas vidas correm risco.
São exemplos de evangelismo as ações citadas acima, mas todos esses casos (e tantos outros) precisam sempre ser cuidadosamente discutidos no âmbito da Igreja, pois, às vezes, há situações – creio que o exemplo do filme – correndo o risco de se transformar num contrasenso na evangelização cristã: usar da mentira para pregar a verdade. O cuidado com a ética, com o testemunho, com as ideologias e justificativas usadas para a evangelização mundial deve-se fazer presente para que não deixemos que por nossas próprias mãos a mentira situe-se onde não deve estar.
"Ilegais, graças a Deus" de Braulia Ribeiro, artigo publicado na Revista Ultimato, nº 321, edição de novembro-dezembro de 2009, comete o equívoco de seguir por um caminho em que os fins justificam os meios: abençoar a nação americana legitimaria a ilegalidade evangélica. O título e o texto se juntam numa apoteose apologética a favor da idéia de que Deus está por trás da presença ilegal (portanto, criminosa) de crentes na América. Mas qual seria a justificativa para Deus apoiar uma ação criminosa? Segundo o texto, a evangelização de uma América agora decadente. "As casas residenciais estão indo a leilão, negócios estão falindo, fachadas com pinturas gasta, lixo nas ruas", assim a presença ilegal dos imigrantes de fé cristã é justificada porque eles, na verdade, são o "Israel redivivo" que irá reconquistar a América para Deus. Mas a autora parte de uma premissa falsa, pois os brasileiros que entraram ilegalmente nos Estados Unidos não entraram PARA evangelizar ou PARA abençoar a América. Eles não sairam do Brasil apoiados por agências missionárias, Igrejas e muito menos estão num Projeto de Missões para evangelizar os cidadãos americanos. Eles foram para os Estados Unidos por motivos pessoais, do contrário, não estariam na situação de imigrantes ilegais. Eles não são missionários que se encontram em algum país fechado ao evangelho e estão dispostos ao martírio por amor à evangelização daquele povo. Quando confrontados com a pergunta se são missionários, estão dispostos a entregar a própria vida, se preciso for, ao responder que "sim, somos missionários, somos discípulos de Jesus"! O mesmo não acontece com os imigrantes ilegais: eles precisam fugir, se esconder, ocultar a verdade e até mesmo mentir para não serem deportados.
Assim, o salto que é dado para explicar a presença abençoadora dos imigrantes ilegais cristãos na América, usando o exemplo de Israel, é totalmente equivocado. Ao contrário do que o texto da Ultimato diz, Deus não promete "expulsar algumas nações", mas TODAS as nações que habitavam a Terra Prometida. Não era para ficar ninguém daquelas nações pagãs, porque chegara para elas o momento de juízo da parte de Deus (Dt 9.5). Todavia, Israel passa a fazer alianças com os povos que Deus prometera expulsar e esta desobediência é a causa de sua derrocada espiritual. Isto logo se demonstra no livro seguinte ao Deuteronômio, o dos Juízes.
A lei para amar o estrangeiro não estava ligada aos estrangeiros que estavam na Terra Prometida, até porque é óbvio que eles não eram estrangeiros, mas, sim, os donos da terra. Estes deveriam ser expulsos e aniquilados, sem que houvesse nenhuma possibilidade de aliança. Mas, uma vez constituída a nação de Israel, deveria se respeitar o estrangeiro "porque fostes estrangeiros na terra do Egito".
Assim, Israel não entrou na Terra Prometida para abençoar os povos dali, mas para a execução deles. Do mesmo modo também, Deus usará por diversas vezes outras nações pagãs para a execução do seu juízo sobre Israel em tantos cativeiros que virão dali para frente. Agora, transportar tudo isso, que foi exclusivo das promessas de Deus para a nação de Israel, e aplicar à situação dos imigrantes ilegais na América é entortar o texto das Sagradas Escrituras. Pior, se o texto a ser usado é esse mesmo (Dt 9.5), então é de se esperar que a presença cristã na América está só aguardando a bancarrota final para tomar aquele país. É claro que não é nada disso o que se está querendo dizer no texto da autora, mas apenas que Deus apoia a presença ilegal (e até a planeja) para que os criminosos abençoem os donos daquela terra tão carente de evangelização...
"Migração, diversidade e mistura entre povos é coisa de Deus", a premissa é verdadeira, mas ela é usada para justificar a imigração ilegal, a diversidade criminosa e a mistura forçada em um país que tem tanto direito de cuidar do próprio quintal como qualquer outro país no mundo. As fronteiras são direito sagrado, assim como as cercas e as portas que protegem nossas famílias. Fechar fronteiras é o direito das nações. "Pular" fronteiras é crime! É a lógica do invasor, do usurpador: já que está tudo desmoronando, improdutivo, vamos tomar posse! Mas a avaliação do critério "improdutividade" torna-se subjetivo e manipulado. É a mesma moral que rege a ação do MST (Movimento dos Sem Terra). Entretanto, ainda que esta venha defendida por textos bíblicos cavados e manipulados por uma linha católica e evangélica que apóia a invasão de terras, só porque crê na falsa pregação de que "Deus criou o mundo para todos e o homem colocou as cercas", ainda assim esta moral não deixa de ser uma falácia para sustentar crimes. Isto não é abençoar.
Haveria excessões à mentira? Haveria atenuantes? Se há, não no contexto de um país democrático e livre, cujos cidadãos pagam seus impostos e vêem seu sistema de saúde inchar com a presença de quase de 30 milhões de imigrantes ilegais! E, certamente, nesse enorme número será uma minoria infinitesimal o número de cristãos. Logo, deve o Governo americano tratá-los de uma maneira diferenciada só porque, segundo o argumento de Braúlia, eles estariam ali para abençoar? E o que é ainda mais falacioso no texto, tentar ligar por extensão de argumento o direito à defesa nacional de um país soberano e democrático ao que aconteceu na África do Sul durante o apartheid: então, defender os interesses justos de uma nação e seus cidadãos é a mesma coisa que segregar?!
Usar mentiras para evangelizar é uma tentação que precisa ser enfrentada pela Igreja. Se não há teólogos, pensadores, filósofos cristãos para que "a linha de frente" reflita lá no campo sobre suas ações, aqueles existem dentro de nossas igrejas e seminários e poderiam ser ouvidos nessas questões. Mais uma vez, creio que sofremos pela dicotômia antibíblica que insiste em separar a Teologia da Missiologia.
Históricamente, tem-se indagado se haveria casos em que as mentiras seriam justificadas: para salvar a vida de um inocente ou para preservar algum valor como justiça, beleza, honra etc. Desde tempos mais antigos, debate-se a idéia da "restrição mental", "o direito de se calar", a "ocultação da verdade", entre outras coisas. Hoje se desenvolveu a tese do "mal menor" que se alastra em trabalhos de Mestrado e Doutorado nas Academias. Kant, Tomás de Aquino e Agostinho concordaram que seja qual for a situação é sempre melhor dizer a verdade, independente de quais forem as consequências. Ainda em tempo, um bom ponto de partida é assumirmos que todos somos mentirosos, assim como dizem as Sagradas Escrituras: todos mentem e enganam sem parar (Rm 3:13a). Poderíamos, enfim, caminhar em temor e tremor com a Graça de Deus pelos labirintos e recôndidos de nossa natureza pecadora, discernindo e avaliando o quanto temos misturado de mentiras à prática da ação missionária da Igreja, reconhecendo onde caímos para, arrependidos, retornarmos ao caminho da piedade. Isto, sem dúvida alguma, exigi-se de cada um de nós como exercício diário.
Fábio Ribas
Agencia Presbiteriana de Missões Transculturais - APMT
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