Por Braulia Ribeiro em 9 de dezembro de 2009
Uma história real de como nasce um missionário africano.
O chão da kimbo é de areia, suja, misturada com lixo das casas e mato. Raul olhava para o chão, porque não era muito polido ficar encarando os mais velhos. Os brasileiros não sabiam disto, então ficavam olhando nos olhos dos outros, esperando sempre uma resposta. Raul não estava ansioso. Sabia como é demorado o processo de decisões numa kimbo, o cuidado que os velhos tomam com cada idéia.
Para Raul era um grande passo estar ali. Sempre se imaginou falando de Deus para outros de sua terra, mas não sabia bem como seria. Agora ali, na kimbo, para sua surpresa descobriu que era fácil. Pensava que ia precisar de entender das difíceis teologias dos brancos, dos termos complicados e “palavrões” religiosos, usados o tempo todo nos cultos que freqüentava desde criança. Ali, em pé, esperando pelos velhos se sentiu de repente adequado. Sabia que teologia não importava naquele momento. Sabia que os palavrões não iam calar no coração dos velhos da kimbo.
A resposta veio. Podiam pousar e contar suas histórias ao povo da kimbo. Sentaram-se, a noite caindo atrás do morro, o fogo foi aceso no meio e as histórias foram fluindo. Primeiro as do povo que eram muitas. Os visitantes deviam ouvir calados e com atenção. Depois podiam contar eles também a que vieram. Raul ouviu e ouviu, e entendeu um pouco da dor do coração daqueles velhos, com um mundo sempre em guerra à sua volta, a comida escassa, os jovens perdendo o gosto pela vida tradicional da kimbo.
Raul era de um outro povo tribal mas sabia da realidade destes conflitos. Os brasileiros também se aplicaram em ouvir e orar pela kimbo. No final as histórias de Jesus saíram dos lábios de todos, simples como a vida ali, com porcos, crianças, as gentes. Raul pensou em Jesus como um homem como ele ou aqueles ali que ouviam. Uma emoção quente como um café veio de dentro dele quando ele falava do amor e do carinho de Jesus por todos.
Naquela noite ele dormiu sabendo que era um missionário. Sua noiva brasileira, e enfermeira da equipe de JOCUM, ia se sentir orgulhosa dele. Pensou nela e pensou na mãe também. Nos anos em que dizia a ela, "mãe, quero ser um pastor”, e a mãe só abanava a cabeça pensando no sonho impossível do filho.
As igrejas que freqüentava eram sempre dirigidas por brancos. Era bom, apesar de que às vezes era muito difícil entender os cultos. O povo sempre tinha que estar muito quieto, as crianças imóveis nos bancos, engomadas como seus vestidos. O português falado na igreja era como o da escola, mas bem diferente da língua Umbundo, a língua de casa. Para Raul umbundo tinha cheiro de gente, de carne assada na brasa, de milho cozido, enquanto português cheirava como as flores das igrejas, dos enterros, ou das latrinas da escola.
Mas parecia para Raul desde pequeno que Deus falava português, então ele se propôs a falar também. E como todos em sua geração ele aprendeu bem, desde muito novo, e se sentia seguro tanto numa língua quanto noutra. Pra sua surpresa, quando conheceu a noiva ela já falava um pouco de umbundo. Tropeçava aqui e ali, dizia coisas engraçadas, mas Raul admirava seu esforço de falar a língua de gente. Foi uma das coisas que o fez amá-la, a esta mulher de outras terras, nem preta nem branca, que falava rápido e cantado como as novelas da TV.
Enquanto crescia e acalentava seu sonho missionário, Raul sempre viu seu país em guerra. Aprendeu a ser grato a Deus, quando por alguns dias o ribombar do fogo nas linhas de guerra parava, ou quando a comida chegava para todos na cidade, ou quando passava dias sem ver ninguém ferido pela rua.
“A gente aprende a viver em guerra…” - Sempre ouviu isto de todo mundo e viu que era verdade. Em nenhum de seus vinte e cinco anos de vida experimentou paz. A guerra na Angola durou trinta e oito anos. A família se apega entre si, o amor tem sempre um gosto de desespero, a comida desce para um estômago ansioso que não sabe quando será a próxima vez que vai comer. Os mortos são tantos que se para de contar.
Afora isto cresceu normal, foi na escola em dias calmos, e sempre na igreja aos domingos. Universidade no país é difícil. Seminário, então, não existia de jeito nenhum. Quando terminou alguns anos de estudo, tinha esgotado as opções. Agora era trabalhar, formar uma família e sobreviver pela guerra afora como fizera seu pai.
Até que chegaram os brasileiros. Eram poucos no início, mas logo pareceram ser muitos pelo tanto que se mexiam pela cidade toda. Formaram muitos novos discípulos, ajudaram programas da ONU, visitaram vilas distantes à pé, participavam de igrejas, sempre muito alegres e vivos. Depois de alguns meses anunciaram seu desejo de treinar missionários. O coração de Raul bateu mais forte ao ouvir isto. Afinal Deus lhe tinha respondido! O curso ia ser em outra cidade.
“Não importa o lugar", Raul pensou. “Orei para que viesse gente assim ao meu país que acreditasse que eu também podia ser missionário. Não perco de jeito nenhum…”
Raul foi com o apoio da família e gostou muito. Lá conheceu outros angolanos como ele e alguns brasileiros missionários. Sirlene, a noiva, estava entre eles. A princípio se assustou um pouco com o jeito deles, uma exuberância religiosa que lhe pareceu exagerada, acostumado que estava a igrejas quietas e ordenadas. Depois entendeu que eram gente bem verdadeira, e que tinha uma consciência do amor de Deus por eles, bem maior que a sua. “Por que será", indagava-se".
Observava de longe quando os brasileiros se reuniam para cantar samba, se requebrando, e se horrorizava quando eles em uma hipnose nostálgica se debruçavam em frente da TV para ver novelas com linguagem pesada e cenas amorosas tórridas.
Além disto aprendia muito nas aulas. Sentia por um lado que aquela era uma outra religião, diferente da que havia sido criado pra entender. Era a mesma bíblia, devia ser a mesma teologia, mas havia algo diferente, pulsante, informal, comum e ao mesmo tempo incomum, naqueles ensinos. Sirlene ensinava muito, sempre rindo à toa. Marcos, o líder da equipe era mais sério, mas falava com uma ternura suave, que ouví-lo se tornava tão repousante quanto dormir.
No fim Raul ainda não se sentia pronto, mas não disse nada a ninguém. O amor entre ele e Sirlene tinha crescido, estavam orando e esperando a direção de Deus sobre seu futuro. Ele tinha que ir para o “prático”, como diziam os brasileiros, fazendo tudo soar muito simples. Mas Raul tinha uma sensação de pavor, quando pensava que finalmente a sua vez tinha chegado.
Foi ali na kimbo que tudo se esclareceu. A religião sempre tinha sido complicada pra ele, porque era uma coisa para os brancos. Deus falava português e precisava de flores caras, e ambiente silencioso para falar. Ou então, Deus era um brasileiro desbocado e irreverente, bem distante da polidez consciente que cerca as relações sociais dos angolanos.
Ali na kimbo, sendo missionário sem o ser na verdade, foi que entendeu pela primeira vez: “Deus pode ser meu.” Deus fala umbundo e mukuando, a língua da kimbo, fala português com os portugueses e brasileiro para os brasileiros. Deus pode ter cheiro de carne e mandioca cozida, pode se sentar no chão lixento da kimbo, pode agüentar a barra da linha de fogo, só pra estar próximo de alguém.
Em meio a sonhos com a noiva, a mãe, Raul foi tocado por Deus naquele chão da kimbo. A mão dele lhe pareceu suave e negra, sua voz lhe falou em língua que se fala às criançinhas e seu cheiro era como o cheiro do regaço da sua mãe.
“Deus é meu", entendeu Raul, e dormiu.
http://www.jocum.org.br/artigos/raul-e-deus
Publicado originalmente em www.eclesia.com.br
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